sábado, 14 de fevereiro de 2015

Não se trata de fidelidade: escolho a mesma pessoa há anos


Se há uma marca da contemporaneidade é a exposição dos conceitos pré-concebidos à expiação pública. Já desde a modernidade proposta por W. Benjamim (já faz 100 anos) se propunha que os tempos são de “tudo o que é sólido se desmancha no ar”. Todas as instituições estão em crise, sendo refletidas em suas funções fundamentais e reais necessidades. Não é mais suficiente aos ouvidos e cérebros a resposta “porque sim”, o que desconstrói boa parte do que há de estabelecido em nosso sistema constituinte: escola, Estado, família, religião, o sentido da vida. Esse modelo de revalidação das relações que temos com o mundo tem dois planos possíveis de visão: O mundo está acabando – ou – O mundo está começando.
No que diz respeito ao amor, aos relacionamentos que envolvem paixão, sexo, o núcleo substancial da instituição família (ao menos em ideal), a crise é evidenciada pela facilidade com que essas relações terminam, quando a tradição manda que sejam “até que a morte os separe”. Os clichês da atualidade são: a “família” faliu, “ninguém respeita mais o casamento”, “as pessoas não querem saber de compromisso”, “não existe mais amor como antigamente”. Se levarmos em consideração o carinho e afeto que o casal tem e mantém entre si durante a relação, tais verdades populares não têm o menor respaldo na realidade, na medida em que uma união que se faz duradoura por conta da obrigação, da pressão externa e não da decisão contínua dos envolvidos, só pode se configurar falsa e, ao longo do tempo, opressora, deteriorante. Não afirmo que todas as relações de antigamente foram contínuas por pressão e que, desgastadas, tornaram os envolvidos velhos amargos e infelizes, mas uma parcela considerável delas sim – talvez a mesma contabilidade das relações frustradas de hoje, que culminam em separação.
Pelo viés contrário, é possível defender a tese de que estamos vivendo tempos em que as relações duradouras o são, cada vez mais, por conta da permanente escolha, decisão voluntária e franca de continuidade por parte do casal. Ou seja, com a possibilidade crescente de se fazer o que quiser da vida, de acordo com a empobrecida pressão social pela relação monogâmica e duradoura, decidir pela continuidade não é mais um ato impensado, automático e inevitável, muito pelo contrário, é o encontro verdadeiro de uma relação que se quer ainda e mais e mais e por mais tempo, talvez até que a morte os separe, mas não por que o padre falou, pelo acaso da morte.
O mesmo se pode dizer da fidelidade. A dinâmica das relações amorosas da contemporaneidade é tão revolucionária e permissiva que é comum ouvir quem diga “É um desperdício” para uma união monogâmica. Contudo, justamente essa liberdade permite que se reflita com mais acuidade as escolhas individuais e faz com que a relação monogâmica se torne uma tara fantástica, não mais uma imposição. Deixando claro que fala-se aqui de um processo em curso, dada a relação com algumas décadas atrás e prevendo a continuidade dessa direção, ou seja, ainda sentimos ciúmes, queremos e exigimos fidelidade tradicional nos relacionamentos que estabelecemos, mas o território da franqueza está cada vez mais acessível. Assim, vem surgindo uma geração de casamentos, ou qualquer outro tipo de relação duradoura (nem o vínculo religioso é mais suficiente como conector sólido), cuja continuidade é fruto de um querer mútuo legítimo, diário.
Fique claro que não se trata de amores ideias, de novela, mas relações concretas, cotidianas. Não é uma aura de magia abençoada que unge os escolhidos, mas justamente a predisposição cada vez maior à franqueza que permite se fazer melhores escolhas, desde o começo, decisões mais maduras, casais cujas bases não foram estabelecidas por pressupostos externos e estereotipia, mas dentro de suas particularidades, descobertas em diálogos madrugada adentro, após o sexo, ou antes. Casais que escrevem com originalidade e história de suas relações, embora acabem, externamente, parecendo tão tradicionais quanto os mais românticos modelos da história. Em tempos extremos, quem sabe a face do “fim da família” não se revele a do “relacionamento perfeito”. Só insisto que, diferente do idealismo dos românticos, os atuais têm suas bases na escolha consciente e bem complexa da mesma pessoa o tempo todo. Nesse caso não se trata mais de fidelidade, mas de uma circunstância tão nova que ainda nem tenha nome que dê conta.


Adriano Dias é um dos idealizadores do projeto, articulista e mergulhador no "mar de signos" em busca de formas curiosas e relevantes de cultura. Também leciona literatura, gramática e técnicas de redação como profissão.
 

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